Gersi Amaro, de 69 anos, se recusa a abandonar a antiguidade e ainda trabalha com as velhas polaróides
O mais antigo lambe-lambe candango está prestes a trocar de ramo, por culpa da modernidade. Por não se adaptar à era digital, Gerci Amaro, de 69 anos, vai se tornar ajudante de mestre-de-obras, assim que o último rolo de filme polaróide desaparecer do mercado. Ele é usuário de um ponto, na Avenida Comercial Norte de Taguatinga, tombado pelo Patrimônio Histórico do DF, mas nem sabia que isso constava no Diário Oficial da terra.
Desde a década-60, quando começou a trabalhar na Praça do Relógio, Seu Gerci jura nunca ter visto “uma mulher sair de casa feia, nem que seja feia, pra tirar retrato”. Também já trocou foto de japonês. E revela: “Nos velhos tempos em que Taguá era um brejo, o vento era uma das minhas tecnologias inevitáveis para revelar a cara do povo taguatinguense”.
Gerci Amaro, um sujeito sem sobrenome e que nem sabe onde nasceu, é o que se pode chamar de “cabra marcado para chegar ao fim da linha”. Não que ele esteja jurado por algum matador, ou vá se aposentar. Não! Aposentado ele já é, há cinco anos. Também, que se alembre, não tem nenhum inimigo. Simplesmente, o último lambe-lambe à moda antiga no Planalto Central do País não se adaptou, de jeito nenhum – e não foi por falta de tentativas – à nova tecnologia da era digital que conquistou todos os seus velhos concorrentres.
Pra compensar uma quase infidelidade ao seu cinqüentenário cotidiano profissional, Gersi Amaro faz uma séria ameaça à clientela: quando não puder mais trabalhar, por falta de filme, dará por encerrado o seu ofício. Este futuro operário – pretende trabalhar com um flho que é mestre-de-obras – não tem sobrenome porque seu pai, José Amaro, amancebado com a morena Geraldina Oliveira, nunca se procupou em dar trabalho a nenhum oficial de registro civil. Mais desligado do que o pai, “Seu Gerci”, como é chamado, nem sabia que a sua banca era tombada pelo patrimônio histórico do DF. “E o pior é que tá mesmo no Diário Oficial”, comemora ele, que saiu do Espírto Santo, na barriga da mãe, e voltou no mesmo endereço, “porque ela não tinha nem onde me parir”, garante, com absoluta atuoridade geográfica.
A banca desse capixaba, que nunca indagou aos pais pelo nome do torrão natal – foi registrado no cartório de Afonso Cláudio –, fica na Comercial Norte de Taguatinga, mais precisamente, no calçadão da Administação Regional. É ali que ele arma a sua jeringonça, nas manhãs de todos os dias, e só passa o cadeado na fachada do “estabelecimento”, que não tem nem nome e está ficando sem razão social de existir, por conta da baixa demanda desses tempos de crise: “Quando fotografo três pessoas, num dia, faço festa. Antigamente, no tempo em que Taguatinga só tinha poeira, eu não dava conta do serviço” relembra o homem que só tem pré-nome, dos tempos em que se metia no chamado “caixotão de abelha”, sumia dentro de um pano preto e vivia enchendo e secando baldes d´água, pra lavar foto. “A fixação (da imagem) era por conta do vento e levava, de 15 a 30 minutos”, calcula.
Bons tempos aqueles, da década-60, em que os os baianos chegavam, só de calção, “querendo tirar retrato pra fichar nas obras”, recorde Gerci, dando a entender que o grosso de sua clientela era procedente da Bahia: “Eu tinha aqui uma camisa e um paletó que levavam mais de ano sem lavar. Mudava de cor. E, como peão não sabe dar nó em gravata, eu só faltava enforcá-los. Quando a fila era grande e todo mundo tava avexado, todo nó (na gravata) saía torto. Mas o peão só queria ver a cara dele. O resto tava bom”, garante.
PROVENTOS - Gerci Amaro recebe pouco mais de R$ 400 reais de aposentadoria, e complemente os seus proventos com uma arrrecadação média mensal de mais R$ 300. Como gasta R$ 160 reais, ‘toda vez que a véa passa”, sempre, fica na expectativa de que as coisas melhorem, no mês seguinte, para comprar dois filmes. Quanto à “véa”, esta é a sua fornecedora, cuja “graça” ele jamais pergntou, bem como o meio pelo qual ela lhe consegue as películas. “Imagino que traga de Goiânia, pois aqui, no DF, não encontro mais”, assegura o lambe-lambe, que não faz questão de intimidades com o vernáculo, anunciando os seus seviços no “Fotoa cor”, pelas paredes de madeira de um barraquinho amarelo, sem a recomendável distância entre um substantivo e um artigo.
INACHÁVEL - As máquinas bem antigonas dos lambe-lambes não se encontram mais. “São inacháveis”, segundo Gerci, querendo acreditar que algum museu as tenha. Ele aprendeu a usá-las com a turma que trabalhava na Praça Saenz Penha, no Rio de Janeiro, no final da década-50. Passados mais de dez anos, ele aderiu à onde das polaróides, cujo modelo que ainda usa tem mais de 20 anos de, considerados, “bos serviços prestados à comunidade”.
Só que, “bons serviços assim”, os lambe-lambes da Rodoviária do Plano Piloto, onde há muitos deles, querem é distância. Todos têm uma só consideração: “Não dá mais. É muito antigo”– e fim de papo.
Parado no tempo, por livre arbítrio, Gerci, também, não deixou de evoluir. Vejamos: se, antes, era o vento que fixava no papel o rosto da sua “seleta” clientela de baianos, agora, ele corta uma latinha de cerveja, joga um pouco de álcool no fundo do recipiente, ascende um isqueiro e arruma fogo pra aqueceer o ambiente, revelando, então, a estampa do cidadão. Digamos que não seja um método, ecologicamente, tão desejável. Mas, convenhamos, não deixa de ser rápido e prático, confere?
O exemplo acima tem a aprovação de Éder Alves Pereira, de 18 anos, nascido em Taguatinga e que usava dos serviços externos – no meio da rua – de Gerci, quando o profissional precisou interromper, por instantes, esta entrevista, que não lhe fora solicitada, previamente. “Dez reais por seis retratos não tá caro, não”, acha Éder, segundo quem “pobre não vai a shopping”.
A maioria dos clientes de Gerci Amaro é de pretendentes à possuir uma carteira de motorista. O “causo” mais engraçado que ele registra nos anais do seu “empreendimento”assucedeu há muitos anos e, por sorte, não lhe envolveu em um conflito internacional. “Um japonês chegou aqui, tirou o retrato e ficou de vir buscar, mais tarde. Nisso, chegou mais um. Quando o primeiro voltou, entreguei o retrato do outro. Quer dizer: um ficou sendo o outro e o outro fcou sendo o um. Eram tão parecidos que nunca voltaram pra reclamar”, conta, sorrindo da trapalhada.
Quando passa muito tempo sem cliente, Gerci fica jogando xadrez, com os aposentados que marcam encontro no “Fotoa cor”. E jura que não tem torre e nem cavalo, muito menos raínha e nem rei capazes de segurar o assanhamento daquela patota, se chegar uma menina nova e pouco vestida, pra ele fotografar. “Mulher não sai de casa feia, nem se for feia. Elas dão uma olhada no espelho (pendurado no barraco), sacodem a mão nos cabelos, se ajeitam e deixam os ‘véi’ babando, parados, lembrando que já foram bons naquilo”, fuxica o lambe-lambe, evidentemente, induzindo o repórter a crer que o “bom naquilo”, não se referia a declínio técnico dos enxadristas.
METRÔ - O último lambe-lambe tradicional do DF colocou os quatro filhos pra estudar – três homens e uma mulher, hoje, na faixa dos 30 aos 46 anos – “batendo ponto” no centro comercial de Taguatinga – aponta para duas mangueiras, dizendo que foi ele quem as plantou e acrescetando que fez muito amigos no pedaço.
Mas o que Gerci não consegue se entender mesmo é com as modernidades. Assim como não rolou intimidades com as câmeras digitais, ele foi expulso da Praça do Relógio, pelas obras do metrô, meio de transporte que se recusa a usar – mora nas QNL e anda de ônibus.
Fotógrafo e montador eventual – de barracos fotográficos e de tecnologias lambe-lambe, Gerci se gostaria, também, “que os amigos do alheio tivessem um pouco mais de resguardo com o patrimôno histórico, cultural e artístico da cidade”. Seu “Fotoa cor”, já foi arrombado diversas vezes. “Não me queixo mais à polícia, porque nunca resolveram nada”, chora.
Certa vez, há quase 20 anos, Gerci Amaro teve uma grande surpresa. Tinha viajado para Niterói-RJ, e viu, numa das praças onde há camelôs, o “caixote de abelha”, o tripé e o pano preto que ele havial construído para trabalhar em Taguatinga. “O dono da banca conferiu todas as particularidades que eu lhe apontei, e viu que eu não mentia. Deixei pra lá, não chamei a polícia”, recorda.
Por ter passado uma grande parte da sua juventude no Rio de Janeiro, Gerci jamais pedeu o hábito de visitar a Cidade Maravilhosa. “Sempre que posso, tô indo”, informa, sem esquecer, também, dos tempos da Revolução de 31 de março de 1964 quando estava prestando o seriço militar num quartel carioca e sonhando, um dia, ser um general. Mas não chegou a engalanar o casaco com cinco estrelas nos ombros. Tornou-se, porém, um “herói da resistência”.
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